Manteigas
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Sair à rua para entrar na música

As duas bandas filarmónicas de Manteigas integraram onze novos alunos nas suas formações. Descobrimos quatro histórias de promessa, liberdade, nervos e… caganitas.

O bocejo chegou depois das dez da noite. O ensaio decorria há mais de uma hora e os onze anos do corpo delgado de Sofia Serra começaram a ressentir-se do cansaço. A flauta transversal continuou em frente dos lábios. Apesar de não chegar com os pés ao chão, conservou as costas direitas. Para se manter alerta, de vez em quando, esfregou os olhos ou lançou o cabelo para trás dos ombros.

Cada pequeno movimento, lento, disfarçado, feito nos momentos de pausa, valeu a pena para prosseguir com o treino até pouco depois das onze da noite daquela terça feira. Afinal, no sábado seguinte, dia 26 de dezembro de 2015, logo a seguir ao Natal, seria a sua estreia como um dos seis novos membros da Música Nova e iria apresentar as boas festas à população da vila. O primeiro dos dois dias de arruada começou às nove da manhã e “acabou pelas 16h30”, lembra. “Já me doíam os pés, mas estava satisfeita por sair e estar com os meus colegas”.

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Sofia Serra

Companheiros de formação que, “tanto os de flauta como os outros, me vão ensinando o ritmo”, assegura com um sorriso. “Por exemplo, há notas muito agudas e eles disseram-me que, caso não consiga, para não me cansar tanto, tocar as de baixo”, acrescenta.

Nos dois dias a percorrer a vila pelas ruas, “becos e assim”, houve grandes descobertas. “Vi uma senhora de uma certa idade, ela saiu e foi cumprimentar os membros novos. Isso foi bom”. Experiências que, após 3 anos de formação musical, lhe trouxeram ensinamentos. “Temos de nos esforçar pelas coisas, por trazer alegria às pessoas, para que ouçam as músicas, especialmente as pessoas de uma certa idade que não estão habituadas e não vão a muitos concertos. Quando saímos elas ficam com um sorriso e isso é bom”.

Música: negócio de família

Quem se estreia pela primeira vez na banda, sai. Ao todo em 2015 nas duas bandas saíram 11 alunos. No Natal a Música Nova integrou seis alunos. No verão, a Música Velha lançou cinco alunos. Francisco Marcos, 10 anos, foi um deles. No seu primeiro dia “não estava nervoso, não foi novidade”, conta. A sua estreia, na realidade, aconteceu quando “estava na barriga da mãe”, explica.

Francisco nasceu numa família de músicos. O pai, a mãe e as duas irmãs fazem parte da Música Velha. “O meu avô, Lourenço Massano, o meu bisavô João Leitão e o meu tetravô António Marcos Leitão, todos lá andaram, eram maestros”. Talvez não seja estranho que, em Manteigas, a música se transforme numa aventura de família. Numa terra pequena (segundo os censos, em 2011, a vila tinha 3430 habitantes e o concelho 3996) existem duas bandas centenárias: a Banda Boa União – Música Velha tem 150 anos e a Associação Recreativa Filarmónica Popular Manteiguense – Música Nova tem 138 anos.

O irmão de Sofia Serra é membro da banda da Música Nova e o seu avô também tocou trombone. No caso de Marília Martins (um dos novos membros da Música Nova) o irmão, o padrinho e os dois filhos têm as suas vidas marcadas por esta filarmónica. Algo semelhante acontece com Maria Silva, recém integrada na Música Velha, que tem ali a companhia do irmão, das primas Flávia e Ângela e dos primos Filipe e Fábio.

O caso de Francisco Marcos será dos mais paradigmáticos. Tão íntima é a ligação familiar com a Música Velha que, bem pequeno, tornou-se a mascote da banda. Sempre que podia acompanhava a formação com o seu primeiro instrumento: um saxofone de plástico. Hoje sopra um bombardino.

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Francisco Marcos

Apesar de todo o à vontade na banda, no dia da saída, “não tocou”. E não foi por ter um dos braços partidos. Afinal aquele com que toca, o direito, “estava bom”. O problema era outro. “A música era difícil para o meu nível. A das boas festas era mais simples”. Com quatro anos de formação musical, na arruada de Natal cumpriu plenamente a sua função. O único senão “é que custa muito descer as ruas e há as caganitas [das ovelhas e cabras], não podemos olhar para o chão e fiquei com os pés todos sujos”.

Promessa cumprida

Marília Massano de 45 anos, destacou-se entre os meninos e meninas que saíram em 2015. É raro um adulto decidir ter aulas de música. Nos 16 anos em que viveu em França com os pais, não conseguiu estudar no conservatório. Algo ficou por concretizar, mas tudo poderia continuar assim, não fora o pacto que firmou com um familiar.

“O meu padrinho era músico e fez-me prometer que iria entrar para a Música Nova. Eu prometi. Ele faleceu uma semana depois e foi a última vez que o vi com vida.” Tudo aconteceu há três anos. “Já que eu gosto tanto de música e estou sempre a dizer aos meus filhos que estão a desafinar, achei que era melhor pôr em prática o meu ouvido”, sorri emocionada.

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Marília Massano

A arruada de boas festas representou o cumprir de uma promessa e de algo mais. “É um orgulho vestir a farda. E a confiança que depositaram em mim foi importante.” Afinal, duvidou várias vezes ao longo do percurso e, diz: “Ainda hoje não estou preparada para os acompanhar. Tenho de estudar todos os dias.” A primeira hesitação surgiu quando lhe deram o clarinete para as mãos. “Volta e meia as articulações não me obedecem.” A surpresa veio quando começou a perceber “que com o exercício os dedos já não bloqueiam tanto”. Não consegue “deixar para trás os nervos”, mas “a música ajuda a concentração e consegue que o nosso cérebro faça duas ou três coisas ao mesmo tempo: ler as notas, os tempos, tocar o instrumento e manter-me sossegada.” A música “rejuvenesceu-me um bocado”, conclui.

A música por dentro

Benefícios que, curiosamente, parecem repetir-se noutros alunos que saíram em 2015. Maria Silva tem 11 anos e estreou-se no verão passado na Música Velha. Tímida, fala baixo e esconde a boca atrás das mãos. Naquele dia achou que não estava preparada, “porque tenho muita vergonha, mas agora já é melhor, já consigo tocar”.

Durante o ensaio, antes da arruada das boas festas, concentrou-se no saxofone e na pauta à sua frente. Gosta da marcha que tocaram pelo vale de Manteigas: Harmonique de Wim Laceroms. “Mas ainda não a consigo tocar toda”, assume.

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Maria Silva

Sabe que esta não vai ser a sua profissão. “Quero ser veterinária de todos os animais: cães, gatos e exóticos”, afirma. A música vai continuar presente, lado a lado com o emprego. Até porque “deixo-me levar por ela, tenho muitos nervos e a música ajuda”, explica. Não está sozinha nesta vivência. “A música entra dentro de mim”, diz Francisco Marcos. E isso deixa-o “feliz, alegre. Tenho que me mexer. Nos ensaios estou sempre a mexer os pés.”

Para Sofia Serra a música (aliada a outro dos seus prazeres, a dança) é uma das várias formas de alcançar algo muito importante para si: “gosto de ser livre”. Acredita, aliás, que todos podiam ser mais livres. “Deviam conviver, sair de casa, sair com os amigos”, de modo a “não ficarem presos”, esclarece sincera. Saírem, como Sofia e todos os novos músicos.

1 Comentário

  1. Luís bruno says

    Grande história…
    Sair e trabalhar para sair é ainda uma motivação para muitos jovens da nossa terra.
    Parabéns Inês. Essa é a minha terra!

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