Campo, Manteigas
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Do terroir se faz a feijoca

Seguimos o cultivo da feijoca de Manteigas de Maio a Outubro. Descobrimos como o clima e solo a caracterizam e que papel tem a leguminosa no processo de emagrecimento.

Carlos Baptista gosta de fazer experiências. Por curiosidade. Para saber o que acontece às suas feijocas quando são cultivadas em meios diferentes. Já levou alguns exemplares de Manteigas para Aveiro e “produziram muito. Eram iguais, só que o sabor ficou diferente, não era tão doce.”

A semente que todos os anos cultiva em terrenos localizados no Vale Glaciar do Zêzere transformou-se “numa feijoca vulgar”. Afinal, continua o agricultor, “a nossa feijoca tem a casca fina. Nas outras, logo quando as pomos de molho, a pele facilmente rebenta. A nossa não, estica e aguenta-se.”

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A flor branca dá origem à feijoca clara.

Na colheita de 2015 decidiu realizar novo teste. Desta feita cultivou a feijoca de Cabo Verde num canto dos terrenos que trata. A favona, como é conhecida naquele país, é bem maior do que a leguminosa de Manteigas, apesar de também ser esbranquiçada (veja fotografia).

Depois da colheita em Outubro chegou a surpresa: “Estão iguais à nossa, diminuíram de tamanho. A vagem é igual. É mesmo do terreno, do clima. Já experimentei semear duas ou três espécies e sai toda igual. É o terreno que a faz assim”, exclama Carlos Baptista. Falta ainda a prova do tacho, para descobrir se se mantêm as diferenças no paladar.

Sol e clima marcam a feijoca?

Depois de cozinhada a feijoca típica desta pequena vila da Serra da Estrela cresce, incha. “É mais suave e adocicada”, diz Carlos Baptista. “Tem a pele mais fina e é menos farinhenta”, acrescenta António de Lemos Santos, antigo confrade-mor da Confraria da Feijoca de Manteigas. A análise visual revela que a feijoca de Manteigas é mais clara, branca e pequena do que as restantes. Pode, no entanto, ser confundida com o exemplar oriundo da China que é apenas um pouco mais amarelado. A feijoca faz parte da família das leguminosas e é uma de 13 mil espécies oriundas da América Central e do México. Demasiados parentes, por isso os enganos podem ser inúmeros.

“Os solos nesta zona são pouco argilosos e promovem uma feijoca que coze toda por igual”, reforça o confrade. Estas características têm alguma semelhança com a região de Guipuzkoa, no País Basco, em Espanha, e os Pirinéus, em França, onde há confrarias como a portuguesa: A Confradía Alúbia de Tolosa e a Confrerie des Haricots de Tarbes. Segundo Lemos Santos, nos três países a leguminosa é produzida em regiões montanhosas, com características aproximadas de solo (pouco argiloso) e clima (zonas de transição entre influência marítima e continental). No fundo, tal como no sector vinícola também o terroir — os fatores ambientais que influenciam uma colheita quando é cultivada numa região específica — da feijoca de Manteigas parece determinar a qualidade do produto final.

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A flor vermelha gera uma feijoca escura, pouco comum em Manteigas.

No entanto, se em Manteigas a produção ainda está em boa parte condicionada pela lógica da autossuficiência (veja texto: “Quem deita a feijoca à terra?”), tanto em França como em Espanha os agricultores uniram esforços para promoverem a feijoca e a sua venda. A cooperativa francesa Pyren’Alliance (www.pyrenalliance.com) desenvolve novos produtos, comercializa-os e impulsiona a marca da feijoca dos Pirinéus (www.haricot-tarbais.com), enfatizando a produção artesanal e a pureza do ecossistema em que é cultivada. Em Espanha uma associação de agricultores vende a leguminosa (que não é branca, mas sim escura) através do site: www.alubiasdetolosa.com.

Tradição retomada

O crescente interesse pelo consumo e cultivo da feijoca em Manteigas teve vários focos de sustentação. A leguminosa sempre foi um típico produto hortícola da região, “por alguma razão quando apareceu o restaurante Manuel das Feijocas há mais de duas dezenas de anos, teve o sucesso que teve”, lembra Lemos dos Santos. “Essas coisas aparecem porque têm de aparecer e acreditam o produto”, acrescenta.

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Sementeira em Maio.

Uma das causas para a constituição da confraria em 2006 foi a constatação de que havia um produto de qualidade com procura, mas “verificou-se que a feijoca tinha sido abandonada”, avança Lemos Santos. “Havia apenas uma ou outra plantação para autoconsumo e a população tinha de se resignar a comprar a feijoca que vinha do Ribatejo, da China e do Canadá.”

Posteriormente, em 2013, a Câmara Municipal de Manteigas (CMM) lançou um programa de incentivo ao cultivo da feijoca, com o intuito de reduzir o abandono das terras agrícolas e potenciar um produto diferenciador da região (www.feijocademanteigas.pt).

De Maio a Outubro

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Feijoca com 15 dias.

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Guias começam a subir estacas.

A história de Carlos Baptista é um dos exemplos dessa progressiva importância da leguminosa. Começou há cinco anos a semear feijocas numa leira de 50 metros quadrados. Atualmente, cultiva 500 metros quadrados e pensa aumentar a área lavrada. Já foi operador de máquinas de fiação na Sotave – Sociedade Têxtil dos Amieiros Verdes, calceteiro, vendedor ambulante, proprietário de um restaurante e, agora, dono de um café/loja de produtos regionais onde vende (secas ou confecionadas) as feijocas que cultiva.

A agricultura, que era apenas um hobbie, passou a ocupar cada vez mais horas do seu dia. “Nunca imaginei fazer uma coisa destas. Uma feijoca semeada dá centenas. Dá gosto vê-las crescer”, constata. No terreno onde trabalha, o sol incide durante quase todo o dia, ouvem-se abelhas, pássaros e a água a regar os diferentes talhões. No final da época de cultivo quase não se consegue caminhar entre os muitos pés de feijoca, tão altos são e tão juntos estão uns dos outros.

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Feijocas adultas envolvem as estacas.

A feijoca é uma trepadeira que pode medir até quatro metros, produz flores brancas (dão sementes brancas ou amareladas) e avermelhadas (sementes arroxeadas) de onde nascem vagens dentro das quais estão as sementes (feijocas). Semanas após a sementeira, pequenas guias (com as quais os pés se agarram às estacam para subirem e crescerem) começam a surgir. Nos primeiros dias de Junho colocam-se as estacas, paus altos de pinheiro ou castanheiro que suportam o peso das feijocas, bem como a força das intempéries. No começo do Outono as leguminosas secam ao sol, ainda agarradas à planta, para depois serem apanhadas e descascadas.

Ajuda a emagrecer

No início de Outubro, enquanto colhe as vagens, Carlos Baptista fala já na maneira como vai confeccionar as feijocas secas. Preocupa-se em afirmar que não faz refogados. O importante é “cozinhar lentamente, nem usar a panela de pressão”. Inquietação natural, pois, muitas vezes, a leguminosa ganha fama de pouco benéfica para a saúde, arrastada pelos enchidos e carnes que a acompanham.

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Campo de feijocas estacado.

Na realidade, este é um produto hortícola particularmente saudável que, inclusive, ajuda no processo de emagrecimento. Quem o explica é o cirurgião Zeferino Biscaia Fraga: “A feijoca possui uma proteína chamada faseolamina que, segundo estudos recentes, pode ajudar no processo de emagrecimento”. Isso “só é possível pela ingestão de farinha de feijoca”. Um estudo feito na Universidade da Califórnia, nos EUA, com 50 pessoas obesas, mostrou que as pessoas que ingeriam uma porção diária dessa farinha perderam mais 1,7 quilos do que os que receberam placebo e ainda mantiveram o peso após 24 semanas.

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Vagem seca ainda na planta.

Numa apresentação feita num evento da Confraria da Feijoca de Manteigas, o médico especializado em cirurgia plástica, reconstrutiva e estética, salientou que a feijoca “é um bloqueador natural de hidratos de carbono e açúcares e aumenta a saciedade”. Os principais benefícios do consumo da feijoca estão relacionados com o facto de a leguminosa ter elevado teor de proteína, fibra e ferro. Em paralelo, acrescenta o cirurgião, “a feijoca reduz a quantidade de gordura que se deposita no tecido adiposo; reforça o sistema imunitário; 
baixa o colesterol; melhora o trânsito intestinal e controla a glicemia (não só o emagrecimento é promovido, como há redução dos picos de glicemia, ocasionados pela aliança entre a faseolamina com as fibras)”.

Às características dadas à feijoca pelo terroir de Manteigas somam-se os benefícios da leguminosa para a saúde. Uma combinação que vai sendo desenhada desde que a semente é lançada à terra até ao seu consumo.

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Cascas de vagens depois da colheita.

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Feijocas a secarem após serem descascadas.

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