Sobreviver é a lei mais importante da caça. Para a presa e para o caçador. Enquanto se espera há tempo para contemplar e conhecer a natureza.

Silêncio e concentração. Com os pés em cima da neve gelada e o vento frio a cortar a pele do rosto, era difícil manter tamanho sossego para se ouvir os passos rápidos e abafados dos javalis. Afinal, numa montaria tudo é determinado num fogacho, após horas de silêncio com os ouvidos nos latidos longínquos dos cães, no apito agudo das cornetas dos matilheiros. Os caçadores esperam pela presa e reagem com urgência mal espiam uma mancha negra a correr entre os arbustos e o arvoredo.

Ali, na Serra de Baixo, durante a montaria organizada a 7 de Fevereiro pelo Clube de Caça e Pesca de Manteigas, a conversa fazia-se num suspiro, enquanto os olhos se colavam na encosta mesmo em frente dos nossos narizes. Os javalis demoravam a aparecer. Nesse largo compasso de espera a imaginação trabalhava tendo apenas por base as histórias que foram saltando como troféus de caça durante o taco, o farto pequeno almoço que acompanhou a inscrição dos caçadores.

Na refeição matinal, com uma pequena navalha na mão, António Neto, 69 anos, cortou pão, presunto e recordou as primeiras caçadas em Manteigas: “O meu avô tinha uma quinta na Castanheira. Íamos para lá ao fim de semana. Como o meu pai era caçador, íamos até Pandil. Um dia disse-lhe que vinha lá um cão grande. Eu tinha 14 anos… Saiu-me um lobo…” A caça segundo este bancário reformado está para além de qualquer explicação simplista. Consegue ser “a adrenalina, mas ao contrário do stress, é a liberdade completa”.

Corina Monteiro, 61 anos, também seguiu os passos do pai, apesar de não pegar numa arma. “Não tinha filho, levou-me a mim.” Actualmente, acompanha o marido e vigia para “ver o que aparece e ouvir as pantufas do javali”. O seu maior orgulho foi ter avistado o navalheiro (são assim chamados os animais mais velhos, com grandes caninos) que o marido matou e com o qual conquistaram um troféu de prata.

Tiros e sobrevivência

Com os caçadores mais experientes grava-se na cabeça os conselhos básicos e aprende-se as regras. O súbito esvoaçar de um bando de pássaros indica, muitas vezes, que a presa está por aqueles lados. Atenção redobrada, o javali pode atacar mesmo pelas costas, os bichos mal se ouvem. Numa montaria o caçador controla uma área específica (uma “porta” numerada e atribuída por sorteio), enquanto numa batida ou caça de aproximação o caçador acompanha por montes e vales as matilhas de cães e os matilheiros.

Dicas que regressaram à memória, mal os sons de latidos e cornetins começaram a aproximar-se, indicando que os cães e os matilheiros estavam mais perto. Quatro horas depois de nos instalarmos na nossa porta avistámos o primeiro rasto negro entre o mato. O caçador correu até ao ribeiro e, perto das árvores, disparou três vezes. O animal perdeu-se entre a folhagem.

Demorou meia hora até aparecer novo exemplar. Os tiros levantaram poeira na colina e avisaram o caçador da porta seguinte que uma presa provavelmente seguiria para os seus lados. Escutaram-se novos disparos à distância. Pouco depois um javali surgiu a cerca de 20 metros do caçador. Suspendeu-se o tempo. O animal castanho escuro, de tamanho médio, galopou, em fuga. O bicho conseguia combinar intensa velocidade e profundo silêncio. O caçador correu na sua direção e tentou disparar. Não o atingiu. Tinha a arma travada por segurança. Destravou-a e atirou de novo. O javali, entretanto avançou montanha abaixo, onde outro caçador o tentou alvejar. Também a este o porco selvagem escapou. Nem um tiro o acertou. Salvou-se.

Na Serra de Baixo foram abatidos seis animais até ao fim da montaria. O Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas permite caçar, no total, 12 javalis por montaria. A maior parte dos porcos selvagens que correram pelas colinas da Serra de Baixo, espevitados pelas matilhas, conseguiram fugir. Esconderam-se entre a urze, giestas e pinheiros e sobreviveram.