Manteigas, Mesa

Matação na Vinha Morta.

O dia da matança do porco é feito de rituais. Os homens matam e limpam o animal. As mulheres transformam o sangue. E assim se fazem as morcelas.

À volta do alguidar as vozes das mulheres ajudam a esquecer a tarefa monótona de encher as tripas para as morcelas. Ali, no lugar da Vinha Morta, em Manteigas, o trabalho é muito e demorado apesar das mãos rápidas e certeiras.

Bem cedo, após o sol nascer, cinco homens apoiaram o sangrador na empreitada mortal. Abriram o bicho, limparam-no e penduraram-no pelas pernas traseiras no chambaril, um pedaço de madeira em forma de arco. A faina masculina acabou a meio da manhã. Um ou dois dias depois de a carne maturar com o frio de Fevereiro e perder a rigidez da morte, ainda terão de cortar o porco. Cada parte, consoante a sua função, será congelada, salgada ou utilizada para fazer novos enchidos como farinheiros e chouriços. Nada se perde.

O sangrador.

O sangrador.

Tábua da matação.

Tábua da matação.

Cinco mulheres têm pela frente um dia cheio. Entremeiam as horas com histórias de hoje e memórias antigas. Espicaçam as solteiras com os seus possíveis pretendentes. Recordam o casamento de Ana Abrantes Pires quando tinha 19 anos. “Houve arroz doce feito num caldeiro com leite de cabra e ovelha. Batatas com chibo [carneiro velho], queijo, bolos de crista e de leite. Arroz com miúdos do chibo e das galinhas. E canja de galinha velha”, conta a noiva passados 54 anos, agora no papel de dona do porco e responsável pela matança.

Perto da lareira Ana Maria Massano, 64 anos, não deixa um pormenor por explicar. “Antes de cozer as morcelas no caldeiro” com água é preciso “deitar um punhado de sal”. O primeiro enchido entra na grande panela protegido pela benção: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e pelas alminhas no purgatório”.

Durante a manhã havia sido ela a aparar (apanhar) o sangue do porco numa bacia. Juntamente com uma amiga e a sua prima Ana Abrantes Pires desinfetou no ribeiro as tripas do porco com sal e sabão azul e branco. Os maus odores foram afastados com laranja e aguardente.

A caminho do ribeiro.

A caminho do ribeiro.

Tripas desinfetadas com laranja e aguardente.

Tripas desinfetadas com laranja e aguardente.

No fogão o almoço da matação (matança) esteve a cozinhar, lentamente, durante quase todo este processo. Feijões caseiros cultivados nos terrenos soalheiros da Vinha Morta, morcela, carnes de porco, cebola crua, pão, vinho… Elas comem com alguma pressa. Eles atrasam-se, sentados à mesa, a descansar do trabalho matinal.

almoço-media

Antes de colocarem as tripas nas enchedeiras (pequeno funil de metal), as mulheres cortaram-nas à medida (cerca de 20 cm) e costuraram uma das pontas com um nagalho (pedaço de fio de algodão). Em torno do alguidar atestam as tripas e atam-nas. No seu interior está o sangue do porco morto de manhã cedo. Foi cozido e temperado com salsa, cominhos, sal, pão e gorduras entre outros ingredientes.

Sangue, pão, salsa e cominhos.

Sangue, pão, salsa e cominhos.

Fios para atar as morcelas.

Fios para atar as morcelas.

A maior quantidade de enchido foi feita com tripas de meada, compradas no talho ou na feira, previamente demolhadas. Depois de cozidas e penduradas nos paus para o fumeiro somam-se dez dúzias de morcelas. Todavia, apenas 27 ficaram protegidas pela tripa do porco morto na matação no lugar da Vinha Morta.

Panela para cozer as morcelas.

Panela para cozer as morcelas.

Para avivar o lume.

Para avivar o lume.

Enchidos no fumeiro.

Enchidos no fumeiro.

Nota: Esta reportagem foi feita a 26 de Fevereiro de 2013.